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terça-feira, 5 de julho de 2011

“Um outro começo”




“Não pares… “ disse a mulher desviando, por instantes, o olhar, da copa da árvore sob a qual estavam deitados.
O homem sorriu e retomou o deslizar da mão pela silhueta da barriga dela. “O que tens?”, perguntou.
Ela hesitou um pouco. Entre os dois nunca houvera segredos, mas ultimamente sentia-se assaltada por pensamentos que pressentia perigosos, capazes de ameaçarem a sua existência em comum, tão perfeitamente construída. Eram o casal mais feliz do mundo e sabiam-no. De que servia perturbar essa certeza? Finalmente, encontrou uma resposta:
“Alguma vez pensaste na sorte que temos?”
O homem voltou a sorrir. Agora era ele que não sabia o que responder. Nunca pensava nestas coisas. Gostava da vida que tinha, do trabalho no campo, de cuidar dos animais. Gostava daquela mulher forte e mansa que todas as noites enlaçava os pés nos dele antes de adormecer. Não sabia dizer se era uma questão de sorte; era a única vida que conhecia e nunca desejara outra.
Desviou o assunto: “E se fôssemos ver os flamingos?”
O sapal ficava perto, antes da ria, depois de uma descida íngreme de terra barrenta e pedras soltas ladeada por árvores de fruto e vinhas. Durante a maior parte do ano, oscilava entre o cinzento que o vaivém da maré produzia e os castanhos, mais ou menos pardos, das aves que por ali poisavam. A chegada do Outono alterava tudo: centenas de flamingos rosa e branco enchiam os canais de cor, dando-lhe um ar feliz e cremoso. O casal ia até lá muitas vezes e nunca se cansava da paisagem tão familiar e previsível, até na mudança.
O homem pensou: “Não é sorte; tudo é, apenas, como pode ser”.
Antes da última curva, uma macieira lançava sobre o caminho alguns ramos carregados, numa espécie de saudação aos passeantes. A mulher reparou nos frutos vermelhos e brilhantes e quis tirar um, não porque sentisse fome, mas pelo prazer de o arrancar, despojar a paisagem, tornar imperfeita uma existência que começava a não lhe permitir desejar nada.
“Vou tirar uma maçã. Também queres?”
O homem respondeu: “Deixa isso. Sabes que o senhor não gosta. Além disso, não há necessidade. As lá de cima são melhores. Quando voltarmos, comemos”.
A mulher hesitou. Lançou um último olhar às maçãs. Imaginou-as rijas e doces, sentiu a pressão dos dentes à primeira dentada, o sumo a escorrer-lhe pelo queixo. O braço esquerdo fez um movimento para colher uma e retraiu-se novamente. Não era capaz.
“Eva ?”
“Estou a ir”.



Célia Costa
05/07/11

1 comentário:

Vilma Pires disse...

E pensar que nossa vida poderia ter sido assim...