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quarta-feira, 20 de julho de 2011

Reciprocidade

Falam do tempo como quem fala de pão e queijo
Ele hoje está que não se pode.
Essa indelicadeza não se pode
Está da dureza das pedras e da cor de bolor.
O tempo não se sabe com vinho tinto,
ninguém conhece o tempo.

Nem ele se conhece.
Mas falam dele como quem fala de caça
E o sol que não há meio de aparecer
O sol não é uma lebre e não há cão de
muito bom faro e patas demais velozes
que o desenvencilhe,
do interior do horizonte,
se a sua timidez estiver no auge do brilho
Quando muito se parece ao pavão
que determina a pose e a hora de pousar
Mas os pavões não se caçam
porque são bonitos como o sol, e o tempo.
Falam do tempo como quem fala de mulheres
Leva agasalho que isto não está estável.
O tempo não desfigura os lábios,
não ondula os cabelos,
não engrandece a cintura,
não arregala os seios:
O tempo não partilha dessa efémera formosura
e nós devíamos amá-lo como ele é,
em vez de falarmos dele como quem fala de teatro:
Olha que está frio, não te deixes enganar pelo sol.
Como nós, o tempo tem uma face e não duas.
Como nós, a face una do tempo chora e sorri.
Porém, sempre os mesmos olhos,
sempre a mesma alma, não diferente palpitar
o do coração, não diferentes as verdades,
ainda que nubladas.
Falem do tempo como quem fala de criaturas!
Criaturas como quem fala de pessoas,
pessoas, como quem fala de nós,
de nós como quem fala de dentro,
de dentro como quem fala de si,
de si como quem fala de dentro de si:
saudade.
O tempo e nós fomos feitos um para o outro,
desenho da nossa simbiose:
regra três simples:
sol está para:
paixão-quase-amor, lágrima, inércia, medo,
assim como:
chuva está para:
xis.
Xis é igual a:
chuva vezes paixão-quase-amor, lágrima, inércia, medo
a dividir por sol.
Xis é igual a:
alento, sorriso, amor-apaixonado, coragem.
Nós e o tempo somos auto-impotentes:
não escolhemos como estamos.
Mas o nosso romance tem poder.



Rui Ramalho

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